Pediatra Carla Rêgo alerta: “A mudança é feita com a responsabilização
dos pais e da família direta”
A prevenção é o primeiro passo para reverter o aumento da obesidade e
deve começar ainda antes do nascimento do bebé. Quem o afirma é Carla
Rêgo, pediatra especializada em nutrição infantil, que alerta para as
três fases durante as quais é crucial não fechar os olhos em relação a
comportamentos de risco, de forma a evitar que a criança se transforme
num adulto com excesso de peso. A especialista alerta ainda para a
necessidade de responsabilização dos pais e da família direta, uma vez
que a criança não tem autonomia para fazer as escolhas acertadas.
“É obrigatório envolver todos os cuidadores para que percebam o
impacto negativo que têm na saúde emocional e física da criança.”
-Carla Rêgo
Em Portugal, não existem dados recentes sobre a prevalência da
obesidade em idade pediátrica. Em 2008 foram divulgados dados de dois
grupos: da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade (SPEO) e do
Childhood Obesity Surveillance Initiative (COSI), um estudo
de vigilância europeu.
Segundo os dados desse ano, cerca de 30% das crianças e
adolescentes entre os 2 e os 15 anos apresentavam excesso de peso ou
obesidade. O COSI
Portugal, um estudo de vigilância que avaliou crianças entre os 6 e
os 8 anos, mostrou, para este grupo etário, um ligeiro decréscimo na
prevalência de excesso de peso (37,9% vs 30,7%) e de
obesidade (15,3% vs 11,7%) ao longo dos últimos anos (2008 - 2016).
Já de acordo com o Estudo do Padrão de Alimentação e de Crescimento
na Infância (EPACI) - um estudo representativo nacional de 2012 que
avaliou crianças entre os 0 e os 3 anos - aos 3 anos de idade, a
prevalência do excesso de peso e obesidade nas crianças portuguesas
era de 31,4%, o que alerta para o facto de a obesidade em Portugal
começar em idades muito precoces.
“Quando verificamos o que tem sido feito a nível mundial no que diz
respeito a campanhas de intervenção para combater a obesidade,
gasta-se muito dinheiro, fazem-se dezenas de atividades e o efeito é
pouco expressivo em crianças e praticamente nulo nos adolescentes”,
afirma Carla Rêgo.
“Esta constatação é suportada pelos dados da Organização Mundial de
Saúde (OMS) e da literatura científica. Apesar dos esforços,
praticamente não se verifica – a não ser em alguns casos pontuais – a
redução da prevalência de excesso de peso e obesidade na idade
pediátrica, o que significa que as coisas não funcionam desta maneira.
Ou seja, os elevados custos envolvidos em intervenções na comunidade
têm uma eficácia questionável, pois não têm sido acompanhados por um
retorno traduzido pela redução da prevalência da doença”.
Para haver uma
verdadeira melhoria,
Carla Rêgo defende que é necessário trabalhar na prevenção precoce
na trajetória da vida, alertando que se deve começar bem antes de a
mulher engravidar, trabalhando em articulação com os cuidados de
saúde primários, através dos médicos de família, pediatras,
enfermeiros e nutricionistas. A médica deixa ainda o alerta para o
facto de que se o trabalho sobre educação alimentar ou atividade
física só for feito pelas escolas já será tarde e, muito embora seja
importante e extremamente válido, provavelmente os resultados vão
continuar a ser abaixo dos desejáveis, como têm sido ao longo dos
últimos anos.
As três janelas de risco e a importância da prevenção
Durante a idade pediátrica, há períodos de elevada sensibilidade no
que diz respeito ao risco de desenvolver obesidade e de esta se tornar
crónica, ou seja, persistir para o resto da vida. Segundo a
especialista, estes momentos cruciais não devem ser ultrapassados com
excesso de peso ou obesidade.
“Sabemos que existem estas janelas de risco ou períodos críticos
para desenvolver obesidade e que se passamos de um período crítico
para o outro, sem conseguir resolver a obesidade, vamos
progressivamente aumentar o risco de aquela criança vir a ser um
adulto com obesidade, com cada vez menos hipótese de retrocesso”, explica.
Para evitar que o bebé se torne num adulto com obesidade, existem 3
fases a ter em atenção:
1. Período pré conceção e durante a gravidez:
O primeiro ponto de prevenção é o trabalho em cuidados de saúde
primários. “Quando a mulher em idade fértil decide engravidar, é
importante adequar o seu peso, melhorar os seus hábitos de vida, quer
nas escolhas alimentares quer em relação à atividade física. O
objetivo é que quando acontece a fecundação esta tenha um estado
nutricional o mais adequado possível para a gravidez, durante a qual
deve haver um controlo do aumento de peso. Deve ainda haver um
ambiente saudável”, explica a médica.
Em causa está a chamada programação metabólica, que significa que as
experiências nutricionais precoces, ou seja, a oferta alimentar e o
ambiente nutricional em que se vive em fases muito precoces da vida
(como a vida intra-uterina) vai marcar aquele indivíduo na sua
trajetória no que diz respeito ao risco de obesidade, doença
cardiovascular, cancro e diabetes, por exemplo.
Segundo Carla Rêgo, “uma mulher que é obesa ou tem excesso de peso
antes de engravidar ou durante a gravidez tem ela própria um ambiente
metabólico chamado de anabólico, ou seja, com excesso de energia. É
neste ambiente que vai ser gerado o feto, que acaba por nascer com um
peso acima do ideal”.
Consequentemente, isto fará com que o bebé tenha “uma alteração da
sensibilidade à insulina do seu músculo, alteração dos centros de
controle da saciedade a nível de sistema nervoso central, entre outras
“adaptações” a este ambiente de “excesso energético”. Isto vai
programar aquele bebé, logo na dependência do seu ambiente
intrauterino, para aquilo que ele vai ser na sua trajetória da vida:
com excesso de peso, diabetes ou doença cardiovascular.
Neste sentido, “este é o primeiro ponto em que se não se fizer uma
intervenção na comunidade, se não houver uma grande vigilância por
parte dos cuidados de saúde primários, teremos a primeira batalha a
ser perdida”, reforça.
2. Período pré-escolar:
Quando o bebé nasce, o objetivo é que haja “um crescimento paulatino,
saudável e a uma velocidade aceitável. Não se pretende que haja
aumentos de peso muito rápidos, inclusive nos primeiros meses e isto é
o que permitirá a continuação da programação metabólica”, explica a médica.
Para isso, é necessário incentivar o aleitamento materno, a oferta
de fórmulas infantis adequadas com baixo teor em proteína e a escolha
do tempo adequado para introduzir novos alimentos, de forma a permitir
que haja um aumento de peso e um crescimento adequados sem haver
incrementos rápidos. Sobre este ponto, a especialista deixa ainda um
aviso: “quando há um aumento de peso muito rápido no primeiro semestre
ou durante os primeiros anos de vida, aquela criança tem uma forte
probabilidade de ser obesa aos 5 anos de idade e de se manter obesa na
trajetória da vida, o que mostra o impacto que a nutrição precoce tem
no risco de o indivíduo se manter obeso. Demonstra ainda a
estabilidade da obesidade para a vida quando esta acontece nos
primeiros anos de vida. Na verdade, uma criança que cresceu até aos 5
anos com excesso de peso tem mais de 50% de hipótese de se manter um
adulto com excesso de peso, e assim perdemos a segunda batalha!”
Já por volta dos 5 anos e durante a infância, “o que se quer é que a
criança vá crescendo devagarinho, seja “esticadinha” e que não faça
aumentos de peso rápidos”. Caracteristicamente, aos 6/7 anos, a idade
do ressalto adipocitário fisiológico, o nosso índice de massa corporal
(IMC) atinge o ponto mínimo em toda a vida. Quando isto não acontece
e, por exemplo, este ponto mais baixo acontece aos 2/3 anos, há uma
grande probabilidade de aquela criança vir a desenvolver obesidade.
3. Adolescência:
Nesta fase importa controlar, nomeadamente na fase da mudança
corporal do adolescente, alterações rápidas de peso e promover a
atividade física e hábitos alimentares saudáveis. “Quando se entra na
adolescência com um histórico de excesso de peso ou obesidade ao longo
do crescimento, a probabilidade de se ser um adulto obeso é de cerca
de 85-90%, ou seja, perdemos a terceira e última batalha e perdemos a
guerra”, defende a especialista.
E quando é demasiado tarde para a prevenção?
“A base de qualquer intervenção terapêutica em obesidade pediátrica,
independentemente da idade, é a intervenção comportamental, o
aconselhamento em termos de oferta alimentar, o incentivo à prática de
atividade física e a redução do tempo de ecrãs”. Em algumas situações,
sempre por recomendação médica, poderá haver indicação, e apenas na
adolescência, para a utilização de medicamentos.
Além deste tipo de tratamento, existem ainda situações em que poderá
estar indicada a cirurgia bariátrica na obesidade infantil. No
entanto, esta será a última opção, uma vez que as indicações são muito
específicas e não é uma recomendação tão comum como a que é dada à
população adulta. Existem assim alguns princípios obrigatórios: a
avaliação por uma equipa multidisciplinar (pediatra, psicólogo,
nutricionista), ter uma obesidade marcada e/ou comorbilidades
associadas (hipertensão ou diabetes ou alterações das gorduras do
sangue ou outras), o indivíduo tem de ser adolescente com o seu
crescimento quase completo e deve ter a capacidade de assumir uma
mudança no seu comportamento mesmo após a cirurgia. Importa ainda
referir que estas cirurgias devem ser feitas em centros de referência
de cirurgia da obesidade.
A mudança tem sempre de passar pela família toda
“É evidente que os programas e a educação alimentar nas escolas são
muito importantes por uma questão de conhecimento geral e de
informação, mas a criança não tem autonomia, estando dependente dos
comportamentos dos seus cuidadores, nomeadamente da sua família. A
criança não percebe o peso das escolhas. Para ela, a comida é afeto e
eu não posso dizer: ‘tu não podes comer’ e muito menos que ‘isto ou
aquilo engorda’. Aliás, até aos 5/6 anos, não devemos trabalhar a
criança em consultas, mas sim ajudar responsavelmente os seus cuidadores”.
A partir dos 12 meses é crucial que, ao ser inserida nos hábitos
alimentares da família, a criança se depare com um contexto
equilibrado. Para isso, deve haver um trabalho de prevenção junto de
toda a família direta realizado o mais precocemente possível.
“É obrigatório envolver todos os cuidadores da criança. Têm de
perceber o impacto negativo que têm na sua saúde emocional e física e
ser responsabilizados. A mudança é feita com a responsabilização dos
pais e da família direta”. Isto deve ser feito fundamentalmente em
contexto de cuidados primários de saúde, com a medicina geral e
familiar, pediatria e nutrição.
Ainda assim, a especialista alerta que, muitas das vezes, “fica-se
sempre à espera de que o médico faça as coisas, mas a família é que
tem de as fazer. O médico aconselha, mas a família é que tem de mudar”.
Entre os 6 e os 11 anos, o trabalho já poderá envolver a criança, em
paralelo com a família, uma vez que esta continua a não ter autonomia.
Já na adolescência, deve ser realizado exatamente o contrário: o
trabalho deve ser todo feito com o adolescente, que pode e deve ser
responsabilizado de uma forma positiva e nunca punitiva. No entanto, a
família tem um papel crucial na retaguarda. “A obesidade é uma doença
crónica que marca de uma forma negativa a vida do indivíduo. Quando
esta começa em idade pediátrica, o risco de a criança/adolescente vir
a ser obeso em adulto é enorme. Isto significa que compete aos pais,
independentemente do trabalho realizado nas escolas ou na comunidade,
adotarem em família e mesmo antes de a criança nascer, hábitos
saudáveis. Desta forma, funcionam como criadores de um ambiente
saudável para aquela criança ser gerada, mas também para que esta
cresça e se desenvolva num ambiente saudável, suportado em
comportamentos saudáveis”, conclui a pediatra
O “clique” de Miguel Paiva: “Tinha que fazer alguma coisa por mim”
Incentivado pelo objetivo de estar presente para acompanhar o
crescimento do seu filho de 9 anos, contactou a APOBARI, marcou uma
consulta e foi submetido a uma cirurgia bem sucedida. Desta vez, tinha
mesmo de mudar de vida e vencer a obesidade.
A importância do acompanhamento multidisciplinar para Clarisse Pires
Foi em 2005 que Clarisse Pires, de 59 anos, decidiu que precisava de
mudar a sua vida. Depois de inúmeras dietas e três cirurgias, Clarisse
mudou não só o rumo da sua vida, como também o da vida dos seus dois
filhos. Atualmente, é vice-presidente da ADEXO - Associação de Doentes
Obesos e Ex-obesos de Portugal, da qual faz parte desde 2006 e graças à
qual descobriu a possibilidade de fazer uma cirurgia para ajudar a
tratar a sua doença.
Rui Marques e o seu papel enquanto pai: “Quero ser um exemplo para os
meus filhos”
Foi quando nasceu o seu primeiro filho que Rui Marques, de 36 anos,
percebeu que tinha de mudar. Tinha cerca de 120 quilos e sentia que
corria todos os dias com 6 garrafões de água nas mãos. Defende que os
pais têm de ter um papel forte na criação de hábitos saudáveis dos seus
filhos e que devem também dar o exemplo. Foi a pensar nisto que criou o
projeto “A Pitada do Pai” em 2016, tendo como objetivo transformar pais
em heróis saudáveis para os mais novos.